Capítulo 49: A Índia e o Choque do Sagrado – Entre o Incenso e o Esterco

Capítulo 49: A Índia e o Choque do Sagrado – Entre o Incenso e o Esterco
Onde aprendi que pureza é um conceito relativo. Falar que fui à Índia buscar espiritualidade soa clichê. Muita gente vai. Mas a Índia que eu encontrei não foi apenas a dos templos dourados e dos gurus em estado de lótus. Foi a Índia crua, orgânica e desafiadora para um ocidental. Para um engenheiro criado com padrões de higiene germânicos, onde tudo deve ser esterilizado, azulejado e desinfetado com cloro, a Índia não é um país; é um tapa na cara. O choque começa assim que você sai do aeroporto. Os cheiros, as cores, o barulho. Mas nada me preparou para a relação deles com a Vaca. Sabemos que a vaca é sagrada. Mas saber é uma coisa; ver a "santidade" na prática é outra. E a prática envolve tudo o que vem da vaca. Tudo mesmo. Inclusive o que nós, no Ocidente, chamamos de sujeira: o esterco (cocô) e a urina (xixi). Lembro-me da primeira vez que vi mulheres amassando esterco fresco com as próprias mãos para fazer discos secos que seriam usados como combustível para cozinhar. Meu estômago de "homem civilizado" revirou. "Como podem cozinhar com isso?", pensei. Depois, vi chãos de casas e até de templos sendo limpos e revestidos com uma pasta de esterco de vaca. Para minha mente lógica, aquilo era a definição de contaminação. Mas, curiosamente, não cheirava mal depois de seco. Cheirava a terra, a campo. Foi aí que precisei calar o engenheiro e ouvir o místico. Eles me explicaram — e a ciência moderna, ironicamente, confirma parte disso — que o esterco da vaca indiana (alimentada de forma natural) tem propriedades antissépticas e repele insetos. O que eu via como "sujeira" era, para eles, um isolante térmico e um purificador. E o xixi? Ah, a urina da vaca (Gomutra). Vi ser vendida em garrafinhas, usada como remédio e até em rituais de purificação. Para eles, é o elixir da vida, rico em minerais. Para mim, no início, era o limite do tolerável. Mas a Índia não está nem aí para a minha tolerância ou para os meus padrões da ANVISA. Ela existe há milênios com essa sabedoria. Aquela experiência foi uma marretada no meu ego. Eu me achava o dono da verdade sobre o que é "limpo" e o que é "sujo". A Índia riu da minha arrogância e me disse: "Jorge, o que você usa para limpar sua casa? Veneno químico (cloro, amônia)? Nós usamos natureza." Não, eu não voltei para o Brasil limpando o chão da minha casa com esterco. Mas voltei com algo muito mais valioso: a quebra do julgamento. Aprendi que o sagrado pode estar onde a gente menos espera. Aprendi que a minha visão de mundo é apenas uma visão, não a visão. Conviver com o cheiro de incenso misturado ao cheiro de curral me ensinou que a vida é esse ciclo completo: o que entra, o que sai, o que alimenta e o que aduba. Tudo é Deus, tudo é energia. Aqueles dias na Índia, entre o deslumbramento e o nojo, entre a fé e a bactéria, foram fundamentais para o terapeuta que me tornei. Para curar alguém, você não pode ter nojo da humanidade, nem de suas partes "feias". Você tem que entender que tudo faz parte do processo.

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