Somos Húngaros...

Somos Húngaros...









Sobre o Filme Passaporte Húngaro








Auto-retrato do eu|outro









Acima, tese de mestrado de Sidnei, através da Univile com o título,
Somos Todos Hungaros.
Confira, é muito interessante

Segue sobre o filme Passaporte Húngaro, algumas observações.Fonte: http://www.escrevercinema.com/retrato_do_artista_como_outro.htm

[texto escrito no lançamento do documentário de Sandra Kogut nos cinema do Rio de Janeiro, em novembro de 2003]

No começo de Um passaporte húngaro (2002), Sandra Kogut fala ao telefone. Maio de 1999, ela pergunta ao consulado da Hungria se uma pessoa com um avô húngaro tem direito a um passaporte húngaro. Na verdade são duas conversas em francês; montadas como uma fala contínua, mas feitas em momentos e em telefones diferentes. Uma voz masculina acha que não, que um neto de húngaro não tem direito a um passaporte húngaro. Uma voz feminina, na outra chamada, pergunta se ela poderia reunir documentos capazes de provar a origem húngara de seus avós.

Nestas imagens iniciais, dentro do quadro, Sandra, como o homem e a mulher do outro lado da linha, é apenas voz. Vemos um telefone, e logo um outro, filmados do que tudo indica ser o ponto de vista dela, que fala com o consulado húngaro e, toda ouvidos à voz do outro lado, dá menor atenção ao que vê. A imagem que se produz então equivale à que se obtém com o gesto automático de rabiscar uma qualquer coisa no papel durante uma conversa ao telefone, os olhos perdidos ao longe, risco automático.

O espectador vê o telefone na tela como se estivesse ao lado de Sandra no instante de filmagem. Vê a imagem tal como ela foi pensada: para mostrar a conversa e não o telefone. Olhamos o telefone e vemos Sandra. O telefone na mesa está em primeiro plano mas não é o que fato importa. O que vemos não é só, nem é principalmente, o que está ali ao alcance dos olhos. Neste exemplo bem em particular, mas também em tudo quanto é filme de um modo geral, o que vemos de fato é o que se constrói com a coisa filmada por meio da estrutura da composição. Cada plano no cinema é apreendido pelo espectador não propriamente como o retrato do que o desenho da imagem imediatamente revela, mas como um gesto da ordem expressiva que organiza o conjunto de imagens do filme. Na imagem vemos a ordem que desenha a imagem daquele modo particular. E como esta ordem é o que de fato se vê, não importa que Sandra não esteja ali. Vemos Sandra, e bem assim como ela quer ser vista no quadro: fora de quadro.

Para saber mais, e ver a continuação dos comentários do filme, clique em Mais informações, abaixo.

Segue a lista dos sobrenomes históricos de nobres húngaros conforme publicação oficial






Continuação sobre o filme Um passaporte húngaro.

A composição revela mais o ponto de vista de onde a cena está sendo filmada do que a cena propriamente dita. A pessoa que filma se insere na cena não como um cinegrafista que vai ao centro da ação para melhor observá-la. Mais do que observar, a cinegrafista Sandra atua na cena que filma. Filma suas idas ao consulado, pesquisas em arquivos e encontros com familiares com um pequeno vídeo digital, e aparentemente as pessoas que estão sendo filmadas nem percebem a câmera; se percebem, acham natural que a câmera esteja na mão de Sandra, espécie de caneta, bolsa, livro, caderneta, um utilitário compacto integrado ao cotidiano. As pessoas filmadas agem como quem conversa em presença de um observador discreto, que está ali mas não interfere, olhar atento e silencioso.



Na verdade, sem esta terceira personagem, a câmera, a conversa seria diferente ou talvez nem viesse a existir. A idéia de pedir um passaporte húngaro surgiu simultaneamente com a de filmar o pedido. Trata-se de um jogo em que a intervenção é de mão dupla. Sandra, a realizadora, age também como personagem de seu filme. Lida com a câmera como se estivesse igualmente sendo observada pela objetiva. Vive o instante que filma como personagem da cena, não como quem dirige a cena.
Busca um passaporte húngaro e documenta o processo – que se estendeu por dois anos – e enquanto filma, não tem idéia do que vai ocorrer em seguida. Filma de certa forma dirigida pelos fatos (como habitualmente num documentário, mas um pouco mais que habitualmente num documentário). Ao mesmo tempo, contraditoriamente, dirige os fatos, que são também uma cena inventada por Sandra, uma cena cinematográfica. Se não uma ficção, pelo menos uma ação provocada para ser vivida e filmada por ela.



No filme existem imagens filmadas por dois outros cinegrafistas, Florent Jullien e Florian Bouchet, mas os dois são levados a filmar como se tivessem os mesmos limites de mobilidade de Sandra quando, sozinha, vive e filma a cena. Na maior parte do tempo é ela quem filma, porque o filme, tal como concebido por ela, só teria sentido se ela mesma o filmasse – para estar todo o tempo no quadro daquele modo especial em que decidiu estar no quadro: nele, mas fora dele.



Na verdade a realizadora Sandra não deixa apenas a personagem Sandra fora de quadro. Como o filme parece resultar de uma sensação, muito provavelmente inconsciente, de que só uma pequena parte do que quer documentar pode ser traduzida em imagens, o fora de quadro é sua figura de base. O assunto do documentário parece estar numa área sensível distante não exatamente do cinema mas distante dos olhos, impossível de ser representada numa cena imediatamente visível. O essencial, aqui, só pode se revelar numa imagem puramente conceitual, sem forma, ainda em busca da forma adequada para se expressar. O que temos aqui é um pensamento em processo, sendo pensado ali, em voz alta, em imagem mental que se move na direção da palavra ou filme em que poderá se expressar por inteiro.



A uma ou outra desta hipóteses se deve o gesto instintivo de valorização do que permanece fora de quadro, os planos desenhados como forma que não cabe em si e que por isso joga a atenção para fora de seus limites. É como se existisse internamente, como impulso criativo, uma tensão entre algo que se quer dizer, e que se sabe possível de traduzir em imagens cinematográficas, e algo que não se sabe muito bem o que é nem como articular, que apenas se insinua e por isso desequilibra, pressiona todo o tempo lá de fora do quadro para ganhar expressão.



Os filmes, não apenas este aqui, os filmes de um modo geral são em maior ou menor medida assim mesmo. Este aqui é um exemplo talvez mais evidente da força central, da força de invenção e de desequilíbrio que alimenta o cinema e que o cinema alimenta. Os filmes se movem todo o tempo para fora de si mesmo, para além de suas fronteiras, para a busca de soluções excêntricas: o cinema está ali, na tela, e ao mesmo tempo em outro espaço, em outro tempo e dimensão. Está distante, num outro lugar – na realidade concreta ou na imaginação. Um outro lugar que visto dali, do cinema, parece mais importante que aquele ali em que o espectador se encontra. Com a atenção entre a tela e este outro lugar, com os olhos nestes dois espaços que o cinema ocupa ao mesmo tempo, talvez seja possível afirmar que o filme de Sandra discute, por meio das diferentes questões que documenta, o processo que o cinema alimenta todo o tempo para se inventar como uma identidade múltipla, aberta para todos os lados.



Um passaporte húngaro parece seguir o caminho apontado por Pasolini ao formular a hipótese de que o cinema, como linguagem artística, o cinema experimentado unicamente como tal, seja uma língua espaçotemporal e não propriamente audiovisual – “o material audiovisual se constituindo, então, como um material físico, sensorial, que corporifica essa língua espaçotemporal puramente espiritual ou abstrata.”

[ver Teoria dei raccords, de Pier Paolo Pasolini, texto escrito em 1971, como adendo ao seu Sceneggiatura come ‘strutura che vul essere altra struttura, emEmpirismo eretico, Aldo Garzanti Editore, 1972.]



Retornemos ao começo Um passaporte húngaro, que é mais som que imagem. Ele define com precisão a estrutura que organiza o documentário. O som aparece antes de tudo. Na tela escura e sem nada além das pequeninas letras brancas dos letreiros de apresentação, ouvimos o ruído de uma chamada telefônica como se estivéssemos com o fone no ouvido ou com o viva-voz do telefone ativado. Quando do outro lado da linha alguém responde ao chamado, a imagem propriamente dita se acende: vemos um telefone, convém repetir, do possível lugar de uma pessoa que está mais de olho na conversa do que no que tem ao alcance da vista. E assim, sem que nos demos conta disso, o filme nos ensina como devemos vê-lo.



Primeiro nos diz como devemos ver a personagem central: como vemos o telefone, sem tirar os olhos dele, estamos com os olhos noutro lugar; ela a rigor não sai da imagem, mas é só o pedaço de mão que entrega um documento ou assina um papel, pedaço de rosto que se insinua num canto da tela, figura mais adivinhada a partir de sua voz do que efetivamente vista. Em nenhum instante se identifica, se apresenta claramente. Sem deixar de ser ela mesma, Sandra se filma como se fosse outra, como se fosse uma pessoa não identificada. Assim como no plano inicial em que vemos-não-vemos o telefone vemos de fato a conversa sobre a possibilidade de ter direito a um passaporte húngaro, tomando o filme como um todo podemos dizer que o que vemos, o que importa de verdade, não é Sandra e talvez nem mesmo as pessoas com quem ela conversa – os funcionários da embaixada e dos arquivos, os parentes e toda a gente que como ela solicita um passaporte húngaro. O documentário é sobre estas pessoas também, mas principalmente sobre muitas outras destituídas de identidade, jogadas para fora do quadro húngaro, para fora do quadro europeu, no final da década de 1930, expatriadas com uma letra K carimbada em seus passaportes.

[No lançamento do filme Sandra contou, em www.repúblicapureza.com.br/passaporte, porque não aparece na imagem do filme: “Foi uma decisão que tomei na hora da edição. Achei que num filme sobre identidade, seria redutor ter uma imagem, um corpo... Ao mesmo tempo, não é um filme autobiográfico, acho mais importante estar presente com o olhar: o que me interessa é através do meu olhar, mostrar outras pessoas (...) Não existe um motivo central. Se eu estivesse pedindo um passaporte porque queria uma cidadania européia, acho que não faria um filme. Eu só quis fazer o filme porque era uma coisa complexa, porque não havia um único motivo.”]



Ao reafirmar que “basicamente queria falar sobre o que somos porque escolhemos ser e sobre o que somos querendo ou não”, Sandra definiu seu filme como uma aventura sobre a construção de uma identidade, sobre a vontade de buscar e inventar raízes, uma aventura que se realiza naquele mesmo espaço particular em que o cinema discute a questão de sua identidade. Não se trata de encontrar o que precisamente nos identifica, mas de, contraditoriamente, trabalhar para aumentar a indefinição e poder contar ao mesmo tempo com duas ou mais diferentes raízes, todas igualmente constitutivas de nossa identidade que seria por natureza múltipla, definível pela impossibilidade de se identificar como apenas uma como a do cinema. Repete-se numa outra dimensão o que certa vez cantou Mário de Andrade: “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta”.



O pedido da brasileira com um avô húngaro parece partir de uma vontade de construir essa identidade plural. Parece partir de um desejo de ganhar um passaporte húngaro sem perder o brasileiro. Ser outra sem deixar de ser ela mesma. Pertencer a um país e a outro ao mesmo tempo. Como observa um funcionário do Arquivo Nacional, “passaporte, quanto mais melhor”. Como logo acrescenta outro funcionário, “ter duas cidadanias é como ter duas roupas; você despe uma e veste a outra”.



O pedido de um passaporte europeu não nasceu, portanto, de um possível mal-estar com a nacionalidade brasileira; nem de um possível desejo de adotar raízes históricas familiares; e muito menos de uma pressão como aquela sofrida pela avó, austríaca que se tornou húngara com o casamento e que se viu obrigada a deixar a Hungria, expatriada, e migrar para o Brasil em 1937, às vésperas da Segunda Guerra Mundial.



Como quem decide levar adiante uma idéia meio abandonada num canto da cabeça, Sandra começou a levantar os documentos necessários e foi se interessando mais pela história de seus avós do que propriamente pelo passaporte. É como se o olhar perdesse de vista o ponto de chegada e se concentrasse nos muitos detalhes descobertos quase ao acaso no meio do caminho. O resultado está na procura, não no encontro. Na busca. Na investigação. No meio do caminho – no movimento e não no ponto em que ele se conclui ou se interrompe. É o que sugere a construção do filme e o que sugere também a referência à “letra de uma canção bonita, em alemão”, lembrada pela avó de Sandra e inserida numa típica imagem-intervalo, o quadro vazio, sem nada, só a porta aberta para o corredor do trem, enquanto o policial de fronteira sai de cena.

[Algumas imagens neste documentário parecem mais pausas, desvios, intervalos, entreatos, do que parte da busca propriamente dita. São planos de ruas, estações ferroviárias, gente que passa, carros, bondes, trens e barcos, lojas e tendas; flagrantes de Recife, Caruaru, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Budapeste; planos fixos, travellings, câmera no tripé, câmera na mão, feitos de noite, de dia, debaixo de sol forte ou de chuva, e quase todos eles sublinhados pela música. A imagem, nestes momentos, chega aos olhos como se fosse música. O colorido de umas (contraste e saturação sugerem uma foto antiga) e o preto e branco de outras (os poucos cinzas e a pouca ação interna sugerem um tempo de espera e mistério), passam uma sensação que fica ressoando, que se prolonga sobre o que vemos em seguida. Reitera-se com este procedimento a idéia de uma composição em que o essencial parece ficar fora de quadro: Estes planos/intervalos, estes planos/música no que mostram parecem mais ocultar que revelar a cena.]



Na “canção bonita” quando alguém pergunta a um caminhante “para onde você vai?”, ouve a resposta alegre: “para casa”. Quando pergunta “de onde você vem”, ouve a resposta triste: “de casa”. Um passaporte húngaro se situa aqui, entre o ir para casa e o sair de casa. A aventura da brasileira neta de húngaros se transforma numa conversa (entre outras questões) sobre as dificuldades de judeus húngaros para escapar do nazismo e conseguir um visto para o Brasil e, uma vez conseguido o visto, sobre as dificuldades de desembarcar no Brasil. Sandra, em busca de um segundo passaporte, descobre o passaporte de sua avó, Mathilde Lajta; e na “canção bonita em alemão” na memória de sua avó descobre a imagem de uma identidade em movimento - questão presente nas entrelinhas do filme. Não por acaso esta breve fala aparece no trecho final, quase como conclusão em aberto: Sandra está voltando para casa, no trem, no meio do caminho entre sair de casa e ir para sua casa.



O comentário da avó importa tanto pelo que ela diz quanto pelo modo de dizer. Ela fala em português, mas constrói as frases como quem pensa em alemão; austríaca que se tornou húngara com o casamento e decidiu viver no Brasil, ao se lembrar da canção bonita alemão, ela insere na fala uma palavra alemã,Wanderer, no lugar de caminhante ou andarilho. Diz: “se a gente pergunta aoWanderer: para onde você vai?”... Não um equívoco, não um esquecimento da palavra certa em português, mas um acertado modo de dizer a complexidade da questão que a neta enfrentava: wandern, pode ser traduzido como viajar a pé, caminhar, mudar-se de um lugar para outro, migrar. A brasileira em busca do passaporte húngaro buscava uma identidade Wander.



A palavra alemã no meio da frase em português é um acaso especialmente significativo neste filme que começa com uma brasileira que quer ser também húngara em Paris, falando ao telefone em francês com húngaros; ao longo da narrativa se inserem palavras em húngaro nos letreiros – kérelem, melléktelek, vizsgakövetelmények – e se destacam detalhes de documentos, placas e avisos em prédios, ora em francês, ora em português, ora em húngaro. A frase em português cortada por uma palavra em alemão é especialmente significativa nesta conversa que passa pela história de gente levada a mudar de país, mudar de língua, a mudar de nome.



Os parentes de Sandra em Budapeste contam quantas vezes a família mudou de nome: um nome judeu, Shmuel Yaacov Ber, por um nome alemão, Maximiliam Friedman; o nome alemão por um nome italiano, Gyuri Fábri; o nome da família, Loewinger, para Latja, rio na fronteira entre a Hungria e a Polônia.



As conversas, sempre cheias de sotaques e em diversas línguas - português, inglês, francês, húngaro, hebraico - reafirmam a idéia de uma identidade meio de caminho, a idéia de uma mudança todo o tempo de um lugar para outro. Movimentar-se, de uma cultura para outra, de uma língua para outra. Uma identidade como a do cinema? Como a do cinema documentário, com um pé no real e outro na imaginação? Uma identidade imagem e som em movimento, uma identidade Wanderer.



O processo próprio do cinema documentário (como definiu João Moreira Salles: entregar o filme que você está fazendo ao outro, ao que você está filmando, para que esse outro decida como o seu filme vai ser), parece ter sugerido a Sandra se transformar em outra para se filmar. Ou então, mais do que uma sugestão vinda do cinema, a idéia nasceu de uma dimensão da experiência contemporânea: a que sugere que nos imaginemos um eu polifônico, a pessoa como a própria pessoa e simultaneamente como uma série de fotos de passaporte em que ela é ela mesma e mais uma estranha de si – como observa a avó de Sandra. A partir daí o filme trabalha a idéia de um eu|diretor, um eu|personagem, um eu|fotógrafo, um eu|fotografia-de-passporte, um eu|brasileiro e um eu|húngaro, entre outros possíveis|eus, inúmeros e um só, em fusão: um eu todo o tempo diante de si mesmo como um estranho.



Ver a si mesmo como outro, um eu|gêmeo, personagem que se dedica a coisas que não passam pela cabeça do eu|diretor.



O que move o eu|diretor de Um passaporte húngaro é a curiosidade de ver como seu eu|outro leva adiante uma idéia meio abandonada num canto da cabeça. Ao acompanhar seu eu|outro Sandra radicaliza algo presente em todo documentário de forma velada, discreta, encoberta: o pedaço em que o documentário, filme voltado para o outro, até certo ponto determinado pelo outro, no outro, e sem tirar os olhos dele, se refere a si mesmo, a seu processo de construção, fazendo do retrato do outro também um auto-retrato. Na imagem, colada em todas as muitas coisas que ela mostra, como se tudo o que estamos vendo fosse um espelho, vemos ou sentimos a presença da câmera. No que vemos, vemos quem vê.

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